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O Cinema como dispositivo

  • Foto do escritor: TUDOIMAGEM
    TUDOIMAGEM
  • 26 de dez. de 2017
  • 8 min de leitura

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Este texto é um recorte das ideias de André Parente a partir do texto Cinema em Trânsito: do Dispositivo do Cinema ao Cinema do Dispositivo.

Podemos dizer que as artes plásticas contemporâneas, em particular as novas mídia, estão re-dinamizando o campo do cinema. De fato, a vídeoarte e as novas tecnologias da imagem estão contribuindo para transformar o dispositivo cinema em suas principais dimensões: arquitetônicas, tecnológicas e estéticas. A questão do dispositivo desloca a atenção até então dada a imagem para o sistema e o conjunto de relações que a determinam.

Parente define o conceito de dispositivo como um sistema de relações que coloca em jogo diferentes instancias enunciativas, figurativas e perceptivas da imagem.

O termo dispositivo significa ao mesmo tempo um sistema técnico e a disposição dos elementos que o compõem. Podemos distinguir, aliás, dispositivo de sistema graças a sua etimologia: enquanto o latim disponere descreve a separação e a configuração dos diferentes elementos de um sistema ou conjunto, o grego sustema significa um conjunto cujo corpo se sustenta, possui consistência enquanto conjunto.

O conceito de dispositivo surgiu primeiro no cinema, para depois contaminar outros campos teóricos, em particular o da artemídia, no qual ele se generalizou (fotografia, cinema, vídeo, instalações, interfaces interativas, videogame, telepresença etc.). Isso se deve ao fato de que as obras de arte e as imagens não se apresentam mais necessariamente sob a forma de objetos, uma vez que se “desmaterializam”, se “dispersam” em articulações tecnológicas, ambientais e conceituais. As imagens passaram a se estender para além dos espaços habituais em que eram expostas: galerias, museus, cinematecas, salas de cinema etc.

Estes efeitos não dependem tanto dos filmes como organização discursiva (ou linguagem na ótica da semiologia do cinema), mas do dispositivo do cinema considerado em seu conjunto (câmera, moviola, projetor etc) bem como das condições de projeção (sala escura, projeção feita por trás do espectador, imobilidade do espectador etc).

O dispositivo cinematográfico sofre ajustes com sua relação história das novas mídias (o que vem sendo chamado de novas mídias (a videoarte e as novas tecnologias da imagem) e as atualizações das teorias cinematográficas, levando-nos a problematizar o dispositivo cinematográfico no que diz respeito a seus aspectos conceituais, históricos e técnicos.

Para Foucault, Deleuze e Lyotard, há dispositivo, desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais, etc) concorrem para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, de normalidade e de desvio (Foucault), de territorializacao ou desterritorializacao (Deleuze), de apaziguamento ou de intensidade (Lyotard).

Como ponto de chegada, a aposta de que o dispositivo é um modelo teórico que envolve aspectos conceituais, históricos e técnicos, que deve ser permanentemente problematizado se quisermos compreender as transformações provocados pelo cinema que coloca o dispositivo como personagem principal do cinema (cinema experimental, cinema expandido, cinema das novas mídias).

O dispositivo cinematográfico tem, portanto, vários aspectos: materiais (aparelho de base), psicológicos (situação espectatorial) e ideológicos (desejo de ilusão). O cinema possui uma organização tecnológica e arquitetônica específica, cujo efeito básico consiste na produção da impressão de realidade.

Esse dispositivo pode ser um aparelho ideológico, cuja origem está na vontade burguesa de dominação criada pela imagem perspectivada. Esta produz uma cegueira ideológica, uma alienação fetichista que remete a essa vontade de dominação.

O dispositivo de simulação cinematográfico, com suas dimensões arquitetônicas e tecnológicas de base, é complementado por uma dimensão discursivo-formal ou estético-formal, no sentido que com ela compõe um modelo de representação cinematográfico.

De fato, a organização discursiva do dispositivo, essencialmente decupagem e montagem clássica, é tão importante quanto seus aspectos materiais e psicológicos. Hoje, está claro que o dispositivo cinematográfico apresenta pelo menos três dimensões que trabalham juntas para aumentar seus efeitos: dimensão arquitetônica, herdada do teatro italiano; dimensão “discursiva”, o discurso da transparência, em grande parte herdada das formas narrativas do romance do século XIX; e dimensão tecnológica que vai da câmera ao projetor (entre os quais vários outros aparelhos de base intervêm).

É preciso dizer que “o” dispositivo, como “o” cinema, existe apenas enquanto modelo teórico. Ao longo de sua história, sincrônica e diacrônica, esse modelo em aparência hegemônico, uma vez que há uma diversidade inegável de condições de apresentação do filme ao espectador, sem falar das variações no que diz respeito à forma narrativa clássica.

Tendo em vista a emergência do vídeo, da imagem de síntese, dos novos meios eletrônicos e digitais de difusão, dos novos sistemas de visualização da imagem (realidade virtual, realidade aumentada, telepresença), do ciberespaço, o conceito de dispositivo renovou-se por meio de uma reapropriação que dele foi feita nos campos da videoarte (multiplicidade de telas, circuito fechado), das artes plásticas (instalações com dimensões ambientais) e das novas mídias (simulação, conexão, interação, imersão). Inclusive, os autores e teóricos das novas mídias vieram a incorporar o conceito de dispositivo, produzindo deslocamentos em sua utilização.

A videoarte, em seus primórdios, influenciada pelo cinema experimental, renovou de modo radical o lugar do espectador e o conceito de obra de arte. De fato, ainda nos anos 60, o vídeo vai intensificar esse processo (iniciado pelo cinema experimental) de deslocamento da imagem-movimento para os territórios da arte. Alguns fenômenos como a multiplicação das telas, o dispositivo do circuito fechado (tempo real), a coexistência entre imagem e objeto, as instalações e a interação com a imagem foram introduzidos e/ou intensificados pelos dispositivos da videoarte.

A principal novidade do digital reside no fato de que este vale muito mais por suas potencialidades. A tecnologia não se dá como um objeto, mas como um espaço a ser vivido, experimentado, explorado. Trata-se de máquinas relacionais, em que as noções de simulação, cognição e experiência ganham outros contornos.

A experiência do espaço torna-se possível por um processo de simulação sensorial do espaço, por meio do dispositivo ou interface, que responde aos movimentos do interator.

O espaço digital é potencialmente infinito, pois é co-gerado pela ação do interator e reapresenta-se a cada comando seu. Ao contrário do filme e do panorama[1], a forma final do lugar visitado depende da ação do interator.

O segundo aspecto é a multidimensionalidade do dispositivo: os estímulos que envolvem o visitante são intensos e reforçam a sensação de presença e de integração do seu corpo ao ambiente. A partir dessa situação, podemos pensar uma equivalência prática entre o espaço digital e o físico: quando o dispositivo funciona como um espaço complementar ou compartilhado não faz muita diferença para o participante estar em um espaço real ou compartilhado, malgrado as suas diferenças.

A segunda característica evidencia outro problema: a relação entre representação e realidade representada. A obra digital já não é mais a marca de um sujeito (o autor, que dá sentido à obra), visto que o sujeito que a realiza é um outro: o leitor-usuário.

Assim, o usuário pode ser encarado como co-autor de uma obra digital por contribuir efetivamente para sua formação. Não há nesse caso um sentido preexistente à apreensão do usuário; a própria experiência constrói o sentido.

Hoje, cada vez mais quando se fala das transformações em curso no dispositivo cinematográfico - seja pelo processo de hibridização do cinema com as novas tecnologias da imagem e a arte contemporânea, seja pela emergência de novas formas de subjetivação a elas relacionadas, somos levados ao passado e percebemos que os dispositivos que precederam o cinema possuem certos vetores que estão sendo dinamizados pelas novas tecnologias da imagem. Por outro lado, assistimos claramente ao processo de transformação da imagem - de uma imagem que se coloca não mais como um objeto, mas como uma imagem-acontecimento, acontecimento por vir, que só pode se atualizar na relação com o espectador em função de um cinema do dispositivo.

As pesquisas históricas mostraram que o modo de funcionamento do cinema clássico, sobre o qual o conceito de dispositivo foi forjado, difere muito do cinema dos primeiros tempos. A partir desta idéia, nos perguntamos se o conceito de dispositivo não nos permitiria compreender melhor as rupturas e as descontinuidades narrativas e a expressividade imagética, atracional, dos cinemas moderno e experimental.

Certos autores analisaram a questão do dispositivo em uma perspectiva transmidiática, com base na idéia do desejo de ilusão gerado pelo aparelho de base do cinema.

Se o conceito de dispositivo, enquanto conceito transhistórico, tem sido utilizado por muitos autores em relação à história da mídia, a premissa geral é a de que ele é um conceito que funciona como uma estrutura que dá sentido à história das mídias imagéticas em uma perspectiva teleológica, que começaria com a perspectiva e passaria pela fotografia até evoluir para o cinema total.

Entretanto, hoje, o processo de reinterpretação do dispositivo em uma perspectiva pragmática permite-nos historicizá-lo de pelo menos dois modos distintos: em primeiro lugar, buscando compreender que um único dispositivo pode dar lugar a diferentes modelos e visões de mundo. É o caso da câmera escura no século XVII, quando ela se torna o modelo de percepção passiva, desencarnada, objetiva; e no século XIX, quando se torna o modelo de uma percepção ativa, encarnada, subjetiva. Ou seja, uma mesma mídia pode esconder, por detrás de sua aparente identidade, diferentes dispositivos. Em segundo lugar, buscando ver diferenças de dispositivo entre os meios, e não similaridades. Assim, o panorama pode trazer em si alguns germes do cinema, como mídia de transporte, estética da transparência, mas não contém uma série de outras questões trazidas pelo cinema.

O que os dispositivos colocam em jogo são variações, transformações, posicionamentos, que determinam o horizonte de uma prática, em ocorrência, a prática cinematográfica, em um feixe de relações dentre as quais podemos distinguir algumas esferas: as técnicas utilizadas, desenvolvidas, deslocadas; o contexto epistêmico em que esta prática se constrói, com suas visões de mundo; as ordens dos discursos que produzem inflexões e hierarquizações nas “leituras” e “recepções” das obras; as condições das experiências estéticas, entre elas os espaços institucionalizados, bem como as disposições culturais preestabelecidas; enfim, as formas de subjetivação, uma vez que os dispositivos são, antes de qualquer coisa, equipamentos coletivos de subjetivação.

O dispositivo é, portanto, por natureza, rizomático, o que, de certa forma, nos permite dissolver certas clivagens e oposições que, em muitas situações, não apenas paralisam nossos pensamentos - linguagem e percepção, discursivo e afetivo, sujeito e objeto, arte e tecnologia, pré e pós-cinema etc. – como criam falsas oposições. Mas também é aquilo que nos permite produzir uma espécie de desterritorialização do dispositivo.

Para eles, há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais etc.) concorre para produzir no corpo social certo efeito de subjetivação, de normalidade e de desvio (Foucault), de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), de apaziguamento ou de intensidade (Lyotard).

Lyotard lançará o conceito seminal de pintura como dispositivo pulsional, que terá fortes influências nas artes plásticas e no cinema. Isto é, uma pintura que já não pode mais ser vista como representação, pois se apresenta como transformadores de energia que suscitam efeitos e disposições da parte dos espectadores, que deixam de ser passivos e passam a ser apenas o vetor de atualização sensorial e afetivo da obra. Em matéria de arte, a única regra comum a dispositivos tão distintos é que os efeitos sejam intensos e os afetos duráveis.

Alguns teóricos do cinema contemporâneo, em grande parte inspirados pela obra de Deleuze, Foucault e Lyotard, cada um a seu modo, problematiza a questão do dispositivo, pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar, para mostrar que o cinema, enquanto dispositivo, produz uma imagem que escapa à representação, aos esquematismos da figura e do discurso, à linguagem e suas cadeias significantes, à significação como processo de reificação. Por outro lado, cada um a seu modo, descobre por trás das alianças que o cinema estabelece com outros dispositivos e meios de produção imagética, um processo de deslocamento deste em relação as suas formas de representação dominantes.

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