A IMAGEM AUTOREFERENTE
- TUDOIMAGEM
- 26 de dez. de 2017
- 6 min de leitura
Este texto é um recorte que trás a essência, no meu entender, do texto A IMAGEM AUTOREFERENTE de André Parente.
Hoje em dia, existem pelo menos três diferentes concepções do virtual. Uma primeira tendência (expressa nos trabalhos de Edmond Couchot, Jean-Paul Fargier e Arlindo Machado, entre outros) quer nos fazer crer que o surgimento de uma tecnologia do virtual é capaz de explicar o fato da imagem, na cultura contemporânea, ter se tornado autorreferente e, por isso, romper com os modelos de representação.
Uma segunda tendência (cujas figuras de proa são Baudrillard e Virilio) toma o virtual tecnológico como um sintoma e não uma causa das mutações culturais. Para além deste ou daquele meio (cinema, televisão, vídeo...) as imagens contemporâneas são virtuais, autorreferentes: ou seja, a imagem pós-moderna é um significante sem referente social.
Uma terceira tendência (presente nos textos de Deleuze, Guattari e Pierre Lévy, entre outros)[1] afirma o virtual como uma função da imaginação criadora, fruto de agenciamentos os mais variados entre a arte, a tecnologia e a ciência, capazes de criar novas condições de modelização do sujeito e do mundo.
O VIRTUAL TECNO(ONTO)LÓGICO
A partir desta idéia de ruptura com os modelos de figuração, Couchot tira uma série de consequências. A mais importante delas, afirma que com a imagem virtual, "não se trata mais de figurar o visível: trata-se de figurar aquilo que é modalizável"[2]. Ou melhor, a imagem não é mais a representação do visível, porque não há mais real preexistente a ser representado. Couchot não estaria confundindo representação e reprodução? Se por um lado, a imagem de síntese não reproduz o real fenomênico, por outro lado, não se pode com isso querer deduzir que ela não seria mais da ordem da representação. Mesmo porque a maior parte da produção de imagens de síntese satisfaz um desejo de representação do visível e, mais profundamente, das significações pressupostas do real.
Se aceitarmos essa confusão entre reprodução e representação, somos levados a sustentar que nenhuma imagem é da ordem da representação, ou, o que dá no mesmo, que todas as imagens são da ordem da simulação. E para isto, bastaríamos evocar a idéia da imagem-janela albertiniana da pintura Renascentista, em que os quadros simulam, no plano bidimensional, a profundidade, tridimensional, da cena representada. Trata-se de uma representação e de uma simulação ao mesmo tempo.
O cinema também dispõe de inumeráveis dispositivos que fazem da imagem cinematográfica uma imagem virtual. Um deles é o campo-contra/campo, dispositivo muito usado, principalmente nos diálogos e nas montagens alternadas dos filmes narrativos, e que produz no espectador a impressão de que o espaço do campo e do contra campo são contíguos. Ora, muitas vezes esse sentimento de contiguidade só existe no filme.
Ernst Gombrich mostrou muito bem que entre a representação e a realidade externa só há ilusão [3], que nenhuma arte reproduz fielmente o real. Cada meio de expressão artística representa a realidade em função dos processos (estéticos e sócio técnicos) de modelização que lhes são próprias em cada época, gênero ou autor. Com isto devemos ser capazes de mostrar que, se a arte busca uma ilusão referencial à realidade a qual remete, esta ilusão muda sem parar. Hoje, alguns dos problemas enfrentados pela modelização da imagem de síntese, visam reproduzir certos aspectos da imagem (espaços desfocados, todos os tipos de borrões causados pelos movimentos de câmera, etc.) que são próprios dos processos de modelização fotomecânicos (fotografia, cinema e vídeo), tendo em vista que a nossa visão do mundo ainda é em grande parte condicionada por eles.
Para outros teóricos, a questão do auto referência das novas tecnologias da imagem é fruto da disposição do espectador.
Com isso poderemos tirar pelo menos duas lições provisórias: 1) a auto referência nunca é apenas uma determinação técnica relativa a esse ou aquele meio de expressão; 2) pode-se chegar à auto- referência por caminhos contrários, ambos dependendo sempre da fé perceptiva e da disposição do espectador: de um lado, temos uma imagem que só remete a si própria ou à outra imagem e portanto rompe com a ilusão referencial externa, por outro lado temos uma imagem que se dá como um duplo tão perfeito do real que a ele se substitui.
A MIRAGEM DO REFERENTE
Uma segunda tendência se impõe. Para autores como Baudrillard e Virilio, a questão do virtual está estreitamente ligada à uma estética do simulacro enquanto desaparição do real., ou seja, a imagem virtual, autorreferente, é como um significante sem referência social.
Baudrillard tem insistido que a simulação é uma das principais características da utilização das imagens na cultura contemporânea. A idéia de Baudrillard é que a imagem tem se tornado cada vez mais virtual - pouco importa o meio de produção - na medida em que ela é uma encenação da ficção como ficção, em que a imagem só remete a si própria. Segundo ele, a Revolução da Romênia e a Guerra do Golfo acentuaram a idéia de uma televisão que não produz mais propriamente imagens, mas sim um buraco negro onde o referente é aniquilado pela informação, uma caixa preta onde se opera a auto referência mortífera que nos impede de colocar a questão da verdade e da realidade do acontecimento histórico.
É curioso notar que essa idéia de um simulacro despotencializado já estava presente na obra de Baudrillard muito antes de ele se tornar o profeta da Era do simulacro, em que a imagem virtual tem um papel predominante. Numa passagem intitulada "miragem do referente"[4], Baudrillard discute a questão da arbitrariedade do signo, para mostrar que o signo não é tão arbitrário assim: o signo não é apenas o reflexo do real, já que não subsiste nenhuma realidade exterior a ele, o referente sendo uma pura miragem. Radicalizando a posição de Benveniste, que tentara relativizar a tese saussuriana da arbitrariedade (segundo Benveniste há arbitrariedade entre o signo e o referente, mas não entre o significante e o significado, à medida em que eles são da mesma natureza), Baudrillard defende que não se pode pensar nenhuma realidade que não seja, desde sempre, linguisticamente formada: se a linguagem reproduz a realidade ela o faz literalmente, ou seja, ela o produz uma segunda vez (Benveniste). O signo (ou a imagem) absorve e reifica o referente, tornando-se mais real do que o próprio real: hiper-real. O que caracteriza o simulacro em Baudrillard não é apenas a seu auto referência, mas seu poder diabólico de fazer do real a sua sombra.
A questão que nos colocamos é a seguinte: nesse caso, porque não afirmar que a dita Era do simulacro teria início não com as novas tecnologias da imagem, mas sim com a separação entre natureza e cultura, separação esta vivida pelo homem com a introdução da linguagem? Não seria Diógenes o primeiro pensador da Era do simulacro? De que outra forma compreender sua reação contra qualquer realidade segunda, artificial (objeto) e virtual (linguagem) que intermediasse sua relação com o real?
A imagem não se torna apenas autorreferente sem implodir o referente; ela não se torna sujeito sem criar uma ortopedização do olhar do sujeito, uma sujeição/industrialização da visão; ela não se hibridiza sem contaminar os sentidos e implodir o poder de imaginação.
AUTO-REFERÊNCIA FABULADORA
Há ainda uma terceira tendência, em função da qual é preciso distinguir os processos de temporalização da imagem entre simulacros despotencializado (o virtual como ilusão do desaparecimento do real) e potencializados (o virtual como ilusão que afirma o real enquanto novo).
Se a modernidade nasce da crise da representação é precisamente porque surge com ela, em primeiro plano, a questão da produção do novo. O novo é o que escapa à representação do mundo, como dado, como cópia. O novo significa a emergência da imaginação no mundo da razão, e consequentemente num mundo que se libertou dos modelos disciplinares da verdade. Tanto na filosofia, como na ciência e na arte, o tempo é o operador que põe em crise a verdade e o mundo, a significação e a comunicação.
A idéia de uma imagem-tempo não é a idéia de uma imagem-virtual potencializada, que rompe com os pressupostos da representação e do real reificado, afirmando o real como novo.
O grande desafio daquele que produz imagens é justamente saber em que sentido é possível extrair imagens dos clichés, imagens que nos permitam realmente acreditar no mundo em que vivemos. Se tudo nos parece uma ficção, uma ficção de ficção, se tudo parece conspirar para uma desmaterialização do mundo, se temos dificuldades em viver a história, é porque tudo parece já ter sido programado, preestabelecido, construído, calculado de forma a nos tirar o poder de fabulação.
Uma coisa é certa: a auto referência positiva, desterritorializante pode ser de dois tipos; um auto referência imanente, relacionada à revelação de verdades locais, e auto referência transcendental, relacionada a fabulação livre. Tanto uma como outra liberam a imagem dos modelos e sistemas de verdade.
Todo o problema do pensamento da imagem remete, em última instância, ao pensamento que faz do mundo uma imagem analogizável (representação), ou faz do mundo uma imagem que é pura alteridade (presentificação), para além da tecnologia empregada. Se a imagem é tida como verdadeira pela visão, é porque ela é analogizável pelo espírito (analogia mental). Se a imagem se libera da analogia é porque o que pensa nela, e por ela, é um puro interstício como sua possibilidade de se metamorfosear (passar entre).
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