ENSAIO LIVRE SOBRE MAYA DEREN – A Vanguarda Americana
- CRISTIANA PARENTE
- 11 de nov. de 2017
- 8 min de leitura
Este ensaio livre é uma colagem de diversos textos sobre o trabalho de Maya Deren, e uma coletânea de pensamento sobre o cinema e fotografia, no texto da própria Maya Deren intitulado “O ensaio Cinema: o uso criativo da realidade”.
“O ensaio Cinema: o uso criativo da realidade” é um de seus trabalhos teóricos mais importantes e é aqui apresentado pela primeira vez em português. É uma reflexão, como se notará, que se insere numa linhagem que traz nomes como Benjamin, Eisenstein, Bazin e Mulvey, entre outros. Deren se apresenta profunda conhecedora de estética e tecnologia, apontando caminhos que podemos facilmente vislumbrar nos debates contemporâneos sobre o real e o virtual.” (Introdução de José Gatti)
Quem é Maya Deren?
Maya Deren (1917-1961) é mais conhecida como uma das criadoras mais notáveis da vanguarda norte-americana. Meshes of the Afternoon (1943), por exemplo, é um de seus filmes experimentais que continuam influenciando o trabalho de inúmeros cineastas. Ela, no entanto, deixou também uma extensa produção poética, teórica e etnográfica.

Na tradição do cinema modernista, Deren descreve um estilhaçado mundo, povoado de indivíduos fragmentados e construído através de temporalidades múltiplas e histórias fraturadas que refletem sobre suas narrativas. Ela explora a relação entre filme e consciência, usando o cinema como uma mágica tecnologia para mudança social e revolução. Uma tradição modernista enraizada na crença "mágica" de que filmes feitos de fantasmas imateriais, reflexões e óticas ilusões - podem transformar radicalmente a realidade.
Todo o trabalho de Deren explora a relação entre a estética, a cognição e a consciência, e o trato modernista do cinema como uma tecnologia de encantamento transformando o invisível, o imaginário e o abstrato em formas visíveis, materiais e táteis.
Sua inovação radical consistiu em reformular este método modernista através de um quadro antropológico, misturando, como um bricoleur, estética ocidental com cosmologia haitiana. Este movimento radicalmente destacou as contradições e desigualdades do capitalismo industrial e foi inspirado pelo socialismo e um fascínio "primitivista" com as culturas tribais.
Deren mistura arte, magia e análise social, descrevendo os rituais burgueses como sendo socialmente estruturados, mas também abertos a sonhos e reconfigurações. Quanto aos surrealistas, os filmes de Deren se esforçaram para trazer de volta a unidade de magia e ciência que o mundo moderno perdeu. Mas ao contrário dos Surrealistas, Deren operou entre espaços em vez de através de justaposições violentas, e através de desempenhos únicos e personalizados, em vez de manifestos coletivos.
A inovação radical de Deren consistiu em retrabalhar esta face modernista através de um quadro antropológico. Aprovando o ponto de vista da Haitianos, Deren insiste na intersecção da ficção e da realidade em vez de na sua justaposição (como com os surrealistas) ou sua relação dialética (como em Eisenstein), e ao fazê-lo, ela apaga os limites existentes entre documentário, filme comercial e arte visual. Ela faz isso de duas maneiras: através da óptica
ilusão e performatividade.

Cinema performativo
Deren incorporou o ponto de vista etnográfico em seus filmes, mas ela era, no entanto, muito crítico com a estética realista de filmes etnográficos e documentários com base em estilos de observação, edição mínima, personagens "indígenas" e localização autêntica.
Os filmes são performativos de duas maneiras. Em primeiro lugar, seu trabalho desfigura os limites entre o processo cinematográfico, o ritual e o mundo real, de uma só vez, e entre os movimentos coreografados dos atores e os movimentos coreografados da câmera, por outro. A qualidade onírica deriva dessa confusão da realidade e do desempenho. Em segundo lugar, seus filmes são performativos porque incorporam a visão mundial primitiva e mágica dentro do próprio processo cinematográfico.
Seus filmes são espaços sem hierarquias fixas e estão abertos à criatividade, reflexão e transfiguração. Eles apresentam cenários políticos alternativos. Na despersonalização e problematização do indivíduo ocidental.
Deren transforma essa crítica em si mesma, refletindo sobre o status marginal de ambas mulheres artísticas na América do pós-guerra. Seus filmes são auto etnografias. Juntamente com seus múltiplos companheiros duplos e finais, parece ter identidades fluidas e problemáticas, difíceis de categorizar e em transformação contínua.
Tanto Eisenstein quanto Deren estavam interessados em como os filmes afetam os sentidos através da percepção. Em suas viagens etnográficas, eles procuraram formas de representação não-ocidentais com acesso direto ao êxtase. Este êxtase era um projeto político radical, aberto por novas dimensões cinematográficas, de transcendência das formas e limitações capitalistas.
Seguem algumas reflexões de Maya Deren, em seu texto: O ensaio Cinema: o uso criativo da realidade. Texto traduzido por José Gatti e Maria Cristina Mendes.
A câmera cinematográfica talvez seja a mais paradoxal de todas as máquinas, na medida em que ela pode ser de uma só vez independentemente ativa e indefinidamente passiva. Quando se compara com o desenvolvimento e o refinamento de outros mecanismos, que acabaram resultando numa ampla especialização, os avanços no escopo e na sensibilidade de lentes e emulsões tornaram a câmera capaz de receptividade infinita e fidelidade indiscriminada. A isto se deve adicionar o fato de que o meio cinematográfico opera, ou pode operar, nos termos da mais elementar realidade. Em suma, ele pode produzir o máximo de resultados mediante esforços virtualmente mínimos: ele requer de seu operador apenas um pouco de aptidão e energia; de seu assunto, que apenas exista; e de sua audiência, que apenas possa ver. Neste nível elementar ele funciona idealmente como um meio de massa para comunicar ideias igualmente elementares.
Este tem sido o maior obstáculo para a definição e desenvolvimento do cinema enquanto uma forma criativa de arte – capaz de ação criativa em seus próprios termos – pois seu próprio caráter é o de uma imagem latente, que só poderia se manifestar se nenhuma outra imagem estiver sobreposta a ela para obscurecê-la.
Por extensão, podemos vê-la com uma indiferença e um desprendimento que não temos em relação às imagens feitas pela mão humana nas outras artes, as quais convidam e requerem nossa percepção, exigindo nossa resposta a fim de efetivar a comunicação que elas deflagram e que é sua raison d’être.
É baseada nessa autoridade que toda a escola do documentário social se baseia. Apesar de serem peritos na seleção da realidade mais eficaz e no uso da posição e do ângulo da câmera para acentuar as características pertinentes e eficazes dessa realidade, os documentaristas operam sobre o princípio da mínima intervenção, no interesse de trazer a autoridade da realidade para sustentar o propósito moral do filme.
É claro que o interesse do filme documentário corresponde diretamente ao interesse inerente a seu assunto. Esses filmes desfrutaram um período de destaque especial durante a guerra. Sua popularidade serviu para tornar os produtores de filmes de ficção mais profundamente conscientes da eficácia e da autoridade da realidade, uma consciência que deu crescimento ao estilo de filme “neorrealista” e contribuiu para a prática de filmagens em locações, ainda crescente em nossos dias.
No teatro, a presença física do elenco promove um sentido de realidade que nos induz a aceitar símbolos de geografia, intervalos que representam a passagem do tempo e outras convenções que fazem parte daquela arte. O cinema não pode proporcionar essa presença física dos atores.
Abstrações e arquétipos
Na medida em que as outras formas de arte não são constituídas da própria realidade, elas criam metáforas para a realidade.
O início da história do cinema é cravejado de figuras arquetípicas: Theda Bara, Mary Pickford, Marlene Dietrich, Greta Garbo, Charles Chaplin, Buster Keaton, etc. Estes apareceram como personagens, não como pessoas ou personalidades, e os filmes que foram estruturados em torno deles eram como mitos monumentais que celebravam verdades cósmicas.

A disposição do ato criativo e as manipulações do tempo-espaço
Onde poderia o cineasta realizar sua maior ação criativa se, no interesse de preservar essas qualidades da imagem, ele se restringe ao controle do acidente no estágio pré-fotográfico e aceita, também, a quase total exclusão do processo fotográfico?
Assim que abandonarmos o conceito de imagem como produto final e consumação do processo criativo (o que ela é, tanto nas artes visuais quanto no teatro), poderemos ter uma visão mais ampla da totalidade do meio e ver que o instrumento cinematográfico consiste concretamente em dois componentes, ambos disponíveis ao artista. As imagens que a câmera proporciona são como fragmentos de uma memória permanente e incorruptível; suas realidades individuais não são de forma alguma dependente de sua sequência no real, e podem ser montadas para compor quaisquer de vários enunciados. No filme, a imagem pode e deve ser apenas o começo, o material básico da ação criativa.
A montagem de um filme cria a relação sequencial que proporciona um sentido novo ou particular para as imagens de acordo com sua função; ela estabelece um contexto, uma forma que as transfigura sem distorcer seu aspecto, diminuir sua realidade e autoridade, ou empobrecer aquela variedade de funções potenciais que é a dimensão característica da realidade.
A ação criativa no filme, portanto, ocorre em sua dimensão temporal; e por esta razão o cinema, muito embora composto por imagens espaciais, é basicamente uma forma de tempo.
Boa parte da ação criativa consiste na manipulação de tempo e espaço. Com isso eu não quero mencionar apenas as técnicas fílmicas estabelecidas como flashback, condensação de tempo, ação paralela, etc. Elas afetam não a própria ação, mas o método de revelá-la. No flashback não existe implicação de que a integridade cronológica habitual da própria ação seja de alguma maneira afetada pelo processo da memória, mesmo que este esteja desordenado. A ação paralela, em que vemos alternadamente o herói correndo para o resgate e a heroína em situação cada vez mais crítica, resulta da onipresença da câmera como testemunha da ação, não como sua criadora.
O tempo pode ser ampliado pela repetição de um simples fotograma, que tem o efeito de congelar a figura no meio da ação; assim o quadro congelado se torna um momento de animação suspensa que, de acordo com sua posição contextual, pode transmitir ou o sentido de hesitação crítica (como o voltar-se para trás da esposa de Lot) ou pode constituir-se num comentário sobre quietude e movimento, como a oposição entre vida e morte.
De modo semelhante, é possível atribuir o movimento da câmera às figuras na cena, pois o movimento geral de uma figura no filme é transmitido pela relação mutável entre a figura e a moldura da tela.
Pode-se filmar pessoas diferentes em tempos diferentes e até em lugares diferentes, por meio do mesmo gesto ou movimento e, através de uma montagem criteriosa, que preserva a continuidade do movimento, a própria ação se torna a dinâmica dominante, que unifica toda a separação.
Isto serve para mostrar a variedade de relações criativas de tempo-espaço que podem ser realizadas através de uma manipulação significativa de sequências de imagens fílmicas. É um tipo de ação criativa disponível apenas para o meio cinematográfico por ser um meio fotográfico. As ideias de condensação e de ampliação, de separação e de continuidade, nas quais ele opera, exploram ao máximo os vários atributos da imagem fotográfica: sua fidelidade (que estabelece a identidade da pessoa que serve como uma força transcendental unificadora entre todos os tempos e espaços separados), sua realidade (a base do reconhecimento que ativa nossos conhecimentos e valores e sem os quais a geografia de locação e deslocação não poderia existir), e sua autoridade (que transcende a impessoalidade e a intangibilidade da imagem e a investe de consequência objetiva e independente).
Se o cinema se destina a ocupar seu lugar entre as formas artísticas plenamente desenvolvidas, deve deixar de meramente registrar realidades que não devem nada de sua existência ao instrumento fílmico. Pelo contrário, deve criar uma experiência total, oriunda da própria natureza do instrumento a ponto de ser inseparável de seus próprios recursos. Deve renunciar às disciplinas narrativas que emprestou da literatura e sua tímida imitação da lógica causal dos enredos narrativos, uma forma que floresceu como celebração do conceito terreno e paulatino de tempo, espaço e relação que foi parte do materialismo primitivo do século XIX. Pelo contrário, deve desenvolver o vocabulário de imagens fílmicas e amadurecer a sintaxe de técnicas fílmicas que as relaciona. Deve determinar as disciplinas inerentes ao meio, descobrir seus próprios modos estruturais, explorar os novos campos e dimensões acessíveis a ele e assim enriquecer artisticamente nossa cultura, como a ciência o fez em seu próprio domínio.
Fotogramas do filme Meshes of the Afternoon
Apresentamos o link para o seu filme, Meshes of the Afternoon (1943):
https://drive.google.com/file/d/1RuvPNtndVTMHLqxxVI3w8Ol50CcMkBwr/view?usp=sharing
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